domingo, 3 de novembro de 2013

Maria Sem História

Maria só chora sozinha.
Maria conversa em silêncio.
Maria pergunta de novo.
Maria, igual a ontem, será amanhã.
Maria "sim, senhora!" com sorriso humilde.
Maria do coração perfeito.
Maria da alma ingênua.
Maria arrastando o corpo no mundo de quadrados com
Paisagens e vozes repetindo o mesmo enredo pela janela.
Maria perdida no tempo que é.
Maria imaginando uma catástrofe da natureza.
Maria rememorando o tempo que vivia feliz.
Maria, angustiada e velha, calando.
Maria das dores nos ossos.
Maria da injeção paliativa.
Maria que passou a fazer falta.
Maria que pede para morrer.
Maria que me enlouquece.
Maria achada na adolescência foi à demência.
Maria perdida na infância estuprada.
Maria relaxada e envergonhada pela fraqueza
Dos músculos calejados e pela inaptidão da massa encefálica.
Maria com saudade.
Maria inútil.
Maria decepada na mama.
Maria sorridente.
Maria que não entende.
Maria doente de ser doente.
Maria do pudor infeliz.
Maria sonhando com as mais belas crianças
Saindo de outras mulheres.
Maria me botando no colo.
Maria que me avisa do leite e do lixo sem parar.
Maria violentada na boleia do caminhão.
Maria batendo na porta.
Maria perguntando "pronto?" ao telefone.
Maria suspirando a vida toda dizendo amém.
Maria sem salário que sonha ficar rica.
Maria desgraçada pela família.
Maria recebida com amor.
Maria com nojo de nudez.
Maria sem gozo, sem prazer.
Maria que ri de banalidades.
Maria que não entende uma piada.
Maria que nunca votou.
Maria atrofiada.
Maria esperando visitas.
Maria perguntando "até quando essa cruz?"
Maria que, quando morrer, me fará chorar de alívio e de dor.
Maia rindo da própria tristeza.
Maria caridosa.
Maria exigindo respeito.
Maria ouvindo minha fúria fugindo em silêncio.
Maria que entende da simplicidade da vida.
Maria que se assusta com a porta batida.
Maria que abre a porta para ver o corredor
Escuro, vazio e silencioso e,
Depois, ofegante,
Se arrasta pro sofá de novo.
Maria atiçando minha maldade.
Maria implorando companhia.
Maria exibindo miséria com chinelos que rangem.
Maria da perna torta.
Maria confusa.
Maria com poesia arcaica me surpreendendo
No sorriso e no olhar infantil escravizado.
Maria que reclama da solidão implacável
E das visitas extintas desde a solidão maior.
Maria sem fé.
Maria guerreira.
Maria calada dizendo sua verdade,
Sua impotência declarada na falta de expressão...
Maria quase pondo fogo na casa.
Maria que perdoa por falta de opção.
Maria que não vê o sol.
Maria com lugar marcado no Céu.
Maria amante das crianças,
Dos animais
E dos domingos na frente da TV.
Maria dos músculos contraídos pela
Alma retraída isolada
Do coração traído.
Maria praguejando, depois rindo.
Maria arrependida por não ter se casado...
Maria tentando brincar comigo
Alguma graça que não vejo
Na redundância do nosso quotidiano.
Maria reclamando que ninguém mais aparece.
Maria reclamando de quem lhe cuida.
Maria reclamando que não mais há crianças correndo na rua.
Maria reclamando do barulho dos outros.
Maria traumatizada debaixo das cobertas
Esperando
Que eu chegue da minha liberdade
Para dizer-lhe que a chuva não pode nos matar,
Nem os raios, caírem nas nossas cabeças.
Maria me acordando antes para nada.
Maria me avisando que velhice, doença e solidão somadas
Matam tão lentamente, que morrer
Seria o maior gesto de amor concedido por essa vida.
Maria deitando com esforço para olhar o teto
E pedindo que ele desabe tão logo durma.
Maria sorrindo leve
Escondida sob os tijolos
Que eu, imóvel, seguro em minhas mãos.

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