terça-feira, 27 de abril de 2010

Câncro e fome

Eu tenho um verme agarrado às minhas costelas.
Ele come meus órgãos lentamente
e minha carne coça por dentro
uma insaciável coceira
abrindo caminho
num abismo imenso e escuro.
Nos meus olhos
há um câncer faminto
obstruindo os brilhos
do alimento deixado
pelo sol nas frestas
da caverna de Sofia.
Ouço uma cantiga indígena
nos olhos sedutores
de uma criança que eu quero devorar.
Mas ela obstrui meu coração...
por ora.
Ela se vai
espalhando odores lascivos
num coquetel de sabores em que,
sua carne,
dividiu comigo.
Eu retorno, deseperado,
do covil
e contorço-me
para um pesadelo súbito.
Eu quase não acredito que existe tal beleza...
Quando ela for mulher, lhe darei amor.
Há um vômito ungindo meu queixo.
Eu acordo quase afogado.
Ela era o sonho que eu queria sonhar porque era a realidade que senti.
Mas aprendi que sonhos de nada servem
quando é a mente que ganha do coração...

Felina

Será que virás nos meus sonhos essa noite?
Como será?
A ferida cicatrizada que tiro a casca com minha unha, ou a água quente derretendo as contraturas de minhas costas
e pondo o paraíso
em mim com a tua boca?
A distância faz minha carne devorar os teus olhares
sobre minhas mãos nas tuas.
Teus olhos derramam lágrimas de sol nas manhãs que eu respiro:
nós estaremos mais felizes
quando nossas carnes se fundirem em sal.
Eu procuro o mar no céu desértico
da tarde metropolitana.
Discuto com meus outros eus e engatilho armas.
Sou nocivo, mas aprendo a acalmar a todos.
Exercícios de distâncias, solidões, sonhos, fraquezas, encantos e reencontros.
Tu danças como uma onça negra
na floresta dos meus delírios.
Num silêncio que tua voz sabe entoar,
provocas minha libido:
eu me contorço na onda das tuas palavras.
Na outra noite,
teus sons do coração imperaram
nas correntezas entre
as matas uivantes
dos ventos de meus sonhos.
E tu rugiste
deixando, então,
o eco do desejo
alargando
meus sentidos.

Lixívia

Na dor dos desavisados está o erro dos fracos.
No amargo céu da boca,
onde lixívia consumida impõe-se como produto do desespero,
o resultado de nênias.
O alimento da alma na lama necessária
da parca memória que,
por via do infortúnio,
tortura, com indiscriminada potência,
o que não se precisa mais pensar.
Sem julgamentos diz-se o torturado
sobre o sonho acabado
porque se findam os sonhos
para começarem as realidades.
Mais forte se faz sobre escorregadio lodo
o homem frente a frente
com seu destino
por não ter desistido,
mesmo no inferno, de si!
Sutil desesperança:
"renda-se a minha hercúlea fé!" - diz.
Amanhã haverá amor e trabalho para todos,
pois que hoje
cumprimos o nosso dever:
a conquista do saber.
Não está só o homem operário de si.
No mundo procriará
e produzirá os sonhos
que sua realidade lhe mostrará
e lhe dará
por valor e compromisso.
Pois que na felicidade do homem de fé
está a comunhão dos que não desistiram,
bravos e reerguidos
das cinzas caóticas
da loucura e da solidão.

O passo do eremita

Não sente empatia o eremita.
Sobe os degraus até o templo da inconsistência.
Nada na lava da insanidade a sorrir-lhe.
Sua gagueira parece produzir canção,
mas é só o engenho do desabitar-se.
Dentro da caverna,
por dentro da fome e das guerras
que não luta
insiste seu desenhado risco.
Nada arriscado senão o acertado erro
delineado no círculo andado.
"Ei! Alô! Acorda!" lhe cobra
a Razão
a cada nova manhã,
cada vida repentina,
mas tarda...
A gravidade das paixões perdidas
lhe impondo ponderação
é um amargo cais depois do conforto do mar.
O eremita é inteligente e sabe
das dores do mundo
não porque doa,
mas porque sabe.
dói, não porque sabe,
mas porque sente.
Viu o homem na forca,
viu a criança das esmolas,
os albergues noturnos lotados de bêbados, grávidas e perdedores,
viu acidentes demais pelo caminho
- e os sofreu também - ,
viu Deus fugir
pelas lágrimas de um marrom
que apanhou outro dia da vida,
viu o amor ir, voltar, voltar e ir (uma confusão),
viu o monstro do mar
puxando os ingênuos para o oceano
e suas ferocidades,
viu o tempo roubado de si,
viu a luta dolorosa, diária e eterna,
viu a violência sem explicação
da criança numa manhã de chuva no colégio,
viu essa violência ser aplaudida
várias vezes no mesmo local e na noite da adolescência,
viu os estralos nos dedos
para a canção e o poema cegos.
O eremita busca em sua mente de ostra
sem pérola
o que os grãos das ideias vividas
lhe dariam se fosse um dia de sol
a compartilhar seu coração.
Natureza não perderia,
pois que essência é
e ponto final.
O eremita - das dores circulares,
do sinal fechado, da contra-mão,
do olhar distante - escama
e propõe o amor universal,
impede a tragédia,
ganha do Tempo,
impõe-se às culpas,
produz seu trabalho,
filosofa a alegria,
reproduz com Amor,
seduz um povo e encanta uma Nação!
O eremita põe fora lanças,
flechas, arcos, arpões e facas
e olha para o mar buscando o encontro consigo.
Engole a água salgada,
quase se safoga,
mas a onda lhe dá força para a força.
Respira o sol, inebriado pelo vento.
Sai sorrindo do mar
e abraça as primeiras pessoas que vê.
Ninguém entende.
Se esquivam.
Ele está outra vez como estão as paixões,
as guerras, os automóveis,
os pianos, as mulheres belas,
a loucura, a indecência,
a política, os aquários,
tudo
enfim
arquitetado
num passo para fora do umbigo.

Num amanhecer

Dê-me um a chance de respirar.
Eu não sei dos caminhos a trilhar.
Nada pode ser pior
do que esse medo
e essa solidão
envolta de névoa
em meu pescoço frio.
Há um rastro de alegria que as horas findam
e eu não parto porque me cai bem a agonia.
Caminho na escuridão
de minhas dormências
quando raia mais um dia
que já se foi...
O espetáculo da inocência
entregando os pontos
sob a penumbra
plantada no sol da delicadeza.
Uma dor enrijecida
pelo tempo
expondo meus nervos caóticos
ao meu espelho mais nocivo...